domingo, 31 de maio de 2020

Pêsames

Há um texto em mim,
querendo vir ao mundo.
Preso no nevoeiro dos pensamentos.
Criptografado em caracteres amorfos
como a tênue fumaça que procura as alturas,
desenhando-se e redesenhando-se
sem nada ser, pelo fato de ser ela, ela mesma.

Há um texto em mim
sem forma, sem suporte.
Que nasce das dores externas
que nos acertam como acidentes de trânsito:
não doem de imediato,
mas nos deixam atordoados,
perdidos e desconectados da realidade.

Agora o texto em mim
ganha forma pelo fato de ter dito
que não a possui, que não consegue existir.
Ganha forma por explicar que não se entende,
que não se enxerga como texto, como mensagem.

O texto em mim ilude-se
pensa que tem forma nas palavras,
mas só se concretiza na sinestesia empática
que move esse lado humano que resiste
às inúmeras transformações:
a surda e atordoante pancada da morte.

Dedico esse texto ao meu aluno Kauã Mota de Sousa, assassinado na noite de ontem 30 de maio de 2020.

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