quinta-feira, 6 de agosto de 2020

A decepção



Tornei-me ou tornaram-me incompreendido?
Fiz-me o desfecho inesperado desse conto,
fugindo da monotonia, sendo o próprio ruído
que destoa de tudo e suscita o confronto.

Minhas palavras confundiram seus ouvidos.
Minhas aspirações perturbaram-lhe o futuro.
E todos os seus desejos, agora preteridos,
Desvanecem-se entre as paredes desse muro.

Os meus olhos não refletem sua imagem;
não alimentam as expectativas mais profundas.
São os espelhos que estilhaçam a miragem
dessas convicções tão antigas e moribundas.

Não. Não sou quem você sempre quis.
Não sou nem mesmo o que eu desejo.
Sou todos os erros e acertos que fiz
Re(ex/s)istindo como último lampejo.

Pintura de John Bates

domingo, 31 de maio de 2020

Pêsames

Há um texto em mim,
querendo vir ao mundo.
Preso no nevoeiro dos pensamentos.
Criptografado em caracteres amorfos
como a tênue fumaça que procura as alturas,
desenhando-se e redesenhando-se
sem nada ser, pelo fato de ser ela, ela mesma.

Há um texto em mim
sem forma, sem suporte.
Que nasce das dores externas
que nos acertam como acidentes de trânsito:
não doem de imediato,
mas nos deixam atordoados,
perdidos e desconectados da realidade.

Agora o texto em mim
ganha forma pelo fato de ter dito
que não a possui, que não consegue existir.
Ganha forma por explicar que não se entende,
que não se enxerga como texto, como mensagem.

O texto em mim ilude-se
pensa que tem forma nas palavras,
mas só se concretiza na sinestesia empática
que move esse lado humano que resiste
às inúmeras transformações:
a surda e atordoante pancada da morte.

Dedico esse texto ao meu aluno Kauã Mota de Sousa, assassinado na noite de ontem 30 de maio de 2020.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Clausura


Debrucei-me sobre mim mesmo...
Fiz de mim minha companhia.
Deixei-me guiar-me a esmo,
nas mesmices de mais um dia.

Conheci-me como dessemelhante
do outro que muito sofria
por não suportar nem mais um instante
a presença de sua agonia.

Apreciei-me cada vez mais,
pude observar-me com calma.
Assim me sustento sem ais,
lendo as páginas de minha alma.

Pintura de Martina Stipan

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